27 de jun. de 2011

Educação de PcD.

Inclusão de surdos esbarra na linguagem

 

Organizações querem escola bilíngue, com salas apenas com alunos surdos e onde a Libras seja ensinada como primeira língua e o português, segunda

Criança surda que estuda por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras) - em meio a professores e colegas também sinalizadores - aprende a ler e a escrever mais cedo e melhor do que aquelas inseridas em salas de aula regulares. Esse é um dos resultados da pesquisa do professor Fernando Capovilla, da Universidade de São Paulo (USP).

"A primeira língua do surdo é Libras. Colocar uma criança de 5 anos dentro de uma sala de ouvintes é como botá-la numa escola chinesa", diz Capovilla. Desde 2001, ele avaliou 9.200 alunos surdos e com dificuldade auditiva. Com idade entre 6 e 25 anos e escolaridade que variava do início do fundamental ao fim do superior, eles passaram por uma bateria de testes (mais informações nesta página).

Os resultados desse levantamento estão em concordância com o que reivindica a Federação Nacional de Integração e Educação dos Surdos (Feneis). A organização é contra a política de inclusão do Ministério da Educação (MEC), que prevê que esses alunos frequentem salas de aula regulares, com a presença de intérprete e, no contraturno, recebam um atendimento especializado.

"Estamos lutando para que a educação de surdos seja considerada no mesmo patamar da indígena, isto é, que os surdos não sejam enquadrados na categoria da educação especial, e sim na educação bilíngue. Libras como a primeira língua e português como segunda", afirma Patrícia Rezende, diretora de Políticas Educacionais da Feneis.

Inclusão. A discussão sobre a inclusão de surdos em escolas regulares esconde sutilezas. Uma delas é a defesa de que o surdo não é deficiente, mas alguém que tem uma língua diferente.

Outro ponto a ser considerado é a opção dos pais. Cabe a eles decidirem que tipo de educação querem para a criança. Como boa parte dos pais é ouvinte, há aqueles que preferem que o filho seja educado no oralismo.

"Escolher é direito dos pais. O importante é que os educadores saibam orientá-los sobre os caminhos possíveis e as consequências da decisão", diz a pedagoga Teresa Cristina Aliperti. "Uma criança que tenha condições de fazer um acompanhamento com fonoaudiólogo e ter aulas particulares de reforço é capaz de aprender. Mas colocar um surdo no meio de 35 alunos ouvintes, sem uma infraestrutura adequada, não vai dar certo."
Dentro da sala de aula, os professores relatam as limitações. "Quando há um surdo na sala, muda toda a lógica de ensinar. Mesmo com intérprete, você precisa selecionar o vocabulário. É complicado atender os dois públicos ao mesmo tempo", diz Antônio Augusto Horta Liza, professor de história da rede municipal em Belo Horizonte.

Sua primeira experiência com aluno surdo aconteceu em 1997, nessa mesma escola. "O diretor abriu a porta da sala e disse: "Aqui está um novo aluno, mas tem um detalhe: ele é surdo". Fiquei apavorado porque eu não sabia nada de Libras. Fui improvisando".

O tempo passou e hoje a escola tem três salas só de deficientes auditivos. "Sala exclusiva é muito melhor. Consigo criar uma metodologia de trabalho só para eles e, com a atuação da intérprete, conseguimos interagir."

 

Bilinguismo

Na Escola para Crianças Surdas Rio Branco, em Cotia, o surdo vai para uma sala com ouvintes a partir do 6.º ano. Antes disso, as turmas são separadas. "Há uma leitura equivocada. Incluir não é estar no mesmo lugar, é dar as mesmas oportunidades. Na colégio regular, o surdo está em desigualdade", diz a diretora Sabine Vergamini.

O garoto Gustavo Gomez Pedroso, de 10 anos, foi para o Rio Branco depois de cursar o 1.º ano numa escola regular. "Aqui eu entendo muito melhor a lição. Lá na outra escola, tinha muita confusão e eu não aprendia direito."

A mãe de Ana Paula Rosário, de 8 anos, estava na fila de espera do Rio Branco. Conseguiu a vaga no ano passado. "Depois de dois anos estudando, ela ainda não sabia organizar o pensamento. Achavam até que ela era autista. Na escola bilíngue, tudo mudou. Aprendeu tão rápido que parece que nasceu falando Libras", diz Líria de Oliveira Rosário.

A fonoaudióloga Cecília Moura alerta para o fato de que sempre deve ser feito o trabalho paralelo entre o aprendizado de Libras e o da fala. "É importante que ela aprenda falar. E, se a criança já sabe Libras, fica mais fácil para ela aprender (a falar)."

Educação no contraturno

A política de educação inclusiva do MEC definiu a educação especial como modalidade transversal. O Decreto 6.571, de 2008, estabelece o financiamento à dupla matrícula desses estudantes. Eles devem frequentar a turma regular e, no contraturno, o Atendimento Educacional Especializado(AEE).

''O surdo deve ser educado no idioma materno e por meio dele''

Segunda, 27 de Junho de 2011, 00h00

 

ENTREVISTA
Fernando Capovilla, PSICÓLOGO

Responsável pelo maior estudo já feito no mundo sobre o desenvolvimento de cognição e linguagem de estudantes surdos, com 9.200 avaliados, Fernando Capovilla é enfático: "Não se rouba a língua de uma criança."

O levantamento faz parte do Programa Nacional de Avaliação do Surdo (Pandes), em curso desde 1995.

Recebeu financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Confira a entrevista abaixo.


Quem foi avaliado?

Avaliamos surdos e deficientes auditivos, estudantes em escolas especiais bilíngues e em escolas comuns sob inclusão. Alunos surdos são aqueles cuja língua materna é a Língua Brasileira de Sinais (Libras) e adquirem o português como segunda língua. Deficientes auditivos são aqueles cuja língua materna é o português.


Qual foi a metodologia?

Os alunos surdos foram avaliados numa bateria de mais de 25 instrumentos psicométricos e neuropsicológicos, durante cerca de 20 horas. Avaliamos funções e competências como leitura alfabética e orofacial de palavras em português, compreensão de leitura de textos, qualidade ortográfica da escrita, compreensão de sinais da Libras, etc. Além disso, também adaptamos provas nacionais de habilidades, como a Provinha Brasil e a Prova Brasil.


Quais os resultados?

Descobrimos que as crianças surdas se tornam capazes de fazer leitura orofacial apenas à medida em que se tornam capazes de fazer leitura alfabética. Também adquirem capacidade de fazer leitura alfabética e de compreender textos mais cedo e melhor em escolas especiais bilíngues do que em escolas comuns. A proficiência em Libras aumenta a proficiência em português (leitura e escrita alfabéticas) que, por sua vez, aumenta a probabilidade de desenvolvimento da habilidade de leitura orofacial. Crianças surdas privadas de ensino-aprendizagem em Libras na educação infantil e no ensino fundamental aprendem a ler e escrever mais tardiamente e menos proficientemente, e têm mais dificuldade em fazer leitura orofacial.

Logo, como deve ser a educação do surdo?

A educação do surdo deve se dar em seu idioma materno e por meio dele. Por isso, a criança surda deve ter acesso a uma comunidade escolar linguística sinalizadora desde a educação infantil até pelo menos meados do ensino fundamental. Tendo educação em Libras no turno principal, a criança deve aprender conteúdo escolar em Libras e a partir dela aprender sistematicamente a língua portuguesa. Finalmente, deve fazer uso do português (leitura e escrita alfabéticas proficientes, leitura orofacial proficiente) para aprender conteúdo escolar em nível cada vez mais profundo e em escopo cada vez mais amplo e compreensivo.


E como fica a inclusão?

A inclusão em escola comum com apoio no contraturno é muito boa para crianças com deficiência auditiva. Para os surdos, o melhor arranjo é ensino-aprendizagem em escola bilíngue até pelo menos o 5.º ano do ensino fundamental.


Há prejuízos, além dos educacionais, para um aluno surdo "incluído" em uma classe convencional?
A linguagem talvez seja a característica mais essencialmente humana, dentre todas aquelas de que dispomos. E ela se desenvolve naturalmente quando somos expostos a uma comunidade linguística cuja modalidade de comunicação é adequada à nossa. Se a modalidade da língua se adequa à modalidade que a criança tem intacta, o desenvolvimento da linguagem se dá de modo natural. Isso é de importância crucial, já que a linguagem é o principal veículo de consciência, aprendizagem, memória, pensamento e expressão. Privação de desenvolvimento de linguagem é uma das maiores tragédias a que se pode condenar um ser humano.


QUEM É

Professor do Instituto de Psicologia da USP, é doutor em Psicologia Experimental e livre-docente em Neuropsicologia. Atua na Avaliação de Desenvolvimento e Distúrbios de Cognição e Linguagem com Intervenção Preventiva e Remediativa.

 

''Nós devemos falar como ela, não ela como a gente''

 

DEPOIMENTO

Rogério Santos, PAI DE ANA BEATRIZ, DE 12 ANOS, QUE É SURDA

"Descobrimos a surdez da Bia quando ela tinha seis meses. Compramos um chocalho e ela nem se importou. A neném da vizinha, que tinha a mesma idade, adorou. Começamos a fazer uns testes caseiros, batendo palmas e tampas de panelas.

Quando o exame mostrou que ela tinha surdez profunda, fiquei perdido. Não conhecia nenhum surdo, não tinha nenhum tipo de convívio. No começo, minha prioridade era fazê-la ouvir. Mas uma amiga fonoaudióloga me disse que o importante era procurar um lugar para que ela criasse uma linguagem de comunicação.

Acabamos na PUC, na divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação, a Derdic. Lá, quando a Bia completou um aninho, começou um trabalho de estimulação. Eu e a Kátia, minha esposa, íamos quatro vezes por semana, aprendemos libras e descobrimos que era a gente é que devia falar como ela, não ela como a gente.

Quando a Bia tinha 2 anos, fizemos a matrícula dela no colégio bilíngue, de onde não saiu mais. Ela adora geografia e ciências e quer fazer um curso de inglês. Já dei um dicionário e tem dia que chego em casa e tem recadinho dela, em inglês, na geladeira.

Hoje, ela é uma pré-adolescente que aceita a condição dela tranquilamente. Mas, é claro, a adolescência nos preocupa. No fim do ano passado, por exemplo, começou essa onda de Restart (banda adolescente) entre os amigos. Ela acha eles bonitos, tem tênis e camiseta da banda. Um dia, ela falou que queria ouvir o que eles cantam. Esse pedido dói, dói bastante. Mas não minto. Deixo clara qual é a situação dela, mas lembro que isso não tira suas possibilidades de crescer na vida."

 

Fonte: Estadão de 21/08/2008.

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